OLHA A BERNÚNCIA
Este texto Antonio Augusto Nóbrega Fontes, foi editado no Anuário de Itajaí, do ano de 1959, transcrevo para o blog, pois a BERNÚNCIA é papa-siri.
Era por volta de 1930, “lembro-me de ter visto” pela primeira vez o boi de mamão. Tinha meus seis para sete anos e da janela da casa de minha avó, à Rua Pedro Ferreira, vi o boi, a cabrinha, o médico, a viúva, os tocadores, os cantores. Era um boi que vinha da Fazenda, pois até hoje sou capaz de cantar o estribilho do Pau de Fitas, que era assim:
Rolou, rolou,
Rolou que não saía
Pau de fitas da Fazenda
Na rua da Alegria.
O pau de fitas se apresentava depois do boi de mamão e como para desmentir o boato de que não sairiam naquele ano, estavam a cantar na rua com alegria.
Pequena multidão acompanhava o boi e se nós estávamos na janela era mais por medo da bernúncia que por sermos tão pequenos ainda. Durante o ano a bernúncia era o bicho papão com que nos amedrontavam: Olha a bernúncia! Não vai lá, menino, que tem a bernúncia! E agora, diante de nossos olhos arregalados, lá estava ela, enorme, escura, rastejante, disforme, com uma bocarra sem fim, procurando um menino levado para engolir. Não houve guri que não a respeitasse ao mesmo tempo que era quase uma glória dizer alguém que já tinha sido engolido pela bernúncia.
Afinal que bicho era a bernúncia? Como um dragão, mas sem rabo; como um hipopótamo, mas sem pernas; como um jacaré, mas só a cabeça!
Mais tarde encontraríamos explicações, dadas pelos estudiosos: tiravam o encanto da coisa, é verdade, mas a verdade é que nós também já não tínhamos mais medo da bernúncia. Como bem desconfiávamos a bernúncia não existia. Seu nome? Era uma corruptela do latim. Quando no batismo o padre perguntava, geralmente em meio a gritaria do afilhado, “Abrenuntias Satanás?” Era o padrinho que respondia “Abrenuntio”, o que equivalia a “Renuncias a Satanás?” – “Renuncio”. Ora, aquele “abrenuntias”, ta perto de satanás levou a gente simples a pensar que ambas as palavras eram a mesma coisa e se havia bicho que não era jacaré, nem dragão, nem hipopótamo, sendo os três ao mesmo tempo, então só podia ser a “bernúncia”, o próprio Satanás.
Há boi de mamão em todo o Brasil: com diversas designações, mas sempre o mesmo folguedo. A “bernúncia”, porém só existe no boi de mamão de Santa Catarina. E para a alegria nossa, ela é itajaiense. Sim, foi em Itajaí que surgiu a primeira bernúncia e ficou incorporada ao folguedo de todo o litoral barriga-verde.
Quem disso nos dá conta é o professor Álvaro Tolentino de Souza. Conta ele que, em 1932, num boi de mamão feito em São José, apresentou a bernúncia pela primeira vez, naqueles lados. Fora trazido pelo preto Felipe Roque de Almeida, dos sertões de Itajaí. Felipe, o introdutor da novidade, contou então que o inventor do bicho era Antônio (ele não lembrava o sobrenome), um empregado da Linha Telegráfica, natural de Itajaí. Este Antônio é que armara a primeira cabeça, grande boca articulada, dentes enormes, ameaçadores e barulhentos, quando manobrados com habilidade. Depois veio o corpo, escuro, disforme, capaz de conter duas pessoas e por isso mesmo permitindo as várias contorções. Metidos na primeira bernúncia, Antônio e um companheiro juntaram-se a um boi de mamão e foi o povo que batizou o mostro, ao gritar
– Olha a bernúncia, olha a bernúncia!
Até hoje, grandes e pequenos, nos distraímos com ela e, maravilhados, como que voltando à infância, ao recordar os versos ingênuos:
Olê, olé.
Olê, olé, olá,
Arreda menino
Que a bernúncia qué passá.
Arreda, arreda,
Se não ela te come,
Arreda do caminho,
Que a bernúncia ta com fome.