ALGUNS ASPECTOS DE ITAJAÍ POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO DA DESCOBERTA – 1900
(Textos de Marcos Konder)
Fonte: Anuário de Itajaí 1949
Pede-me Silveira Júnior alguns aspectos de Itajaí por ocasião do Centenário da Descoberta- 1900.
Impossível se me torna a relembrar fatos e épocas exatas, uma vez que, pouco antes do Centenário, eu havia deixado a escola primária e complementar de Blumenau e ensaiava-me na vida comercial, para a qual não sentia vocação alguma. A morte prematura de meu pai deixara-me privado de entrar para ginásio oficial para seguir um curso superior.
O desaparecimento do velho Marcos Konder, que por sinal morrera bem moço, com apenas 48 anos, mergulhou o meu coração do mais profundo desespero. Motivos me sobram, portanto, para não ser um pregador elogioso do passado. Laudator tempotis acti -, como dizia o velho Horácio na sua Arte poética. Apelar para a minha memória seria, segundo o poeta alemão Fr. Haug, ressuscitar almas frias, quando somente a recordação sugere sentimentos vivos. Daí o dizer do nosso poeta – Recordar é viver, mas também sentir. Quero, portanto, deixar falar os sentimentos e recordar pedaços do Itajaí, tais quais eu os vi e senti após o centenário, impressões que consegui gravar mais no coração do que na memória. Daí não poder fixar às épocas exatas, mas deixar a narração seguir o seu curso, como um relógio que ora adianta, ora atrasa.
Diga-se a verdade, sem querer ofender os brios da nossa terrinha, o Itajaí daquele tempo era senão um porto atrasado – atrasado de uma época, em que o principal negócio girava em torno da madeira – a história se repete – mas madeira serrada, em tabuado ou pranchões ou pernas de serra que se alteavam em grades enormes para secar e para distinguir a lei, do refugo bom e da qualidade exportável do refugo ordinário.
As pilhas começavam no alto da Rua Pedro Ferreira, no porto do Coronel Antonio Pereira Liberato – Tio Antonico chamado – e iam rio abaixo até o trapiche Konder, tendo de permeio os trapiches de João Bauer, Nicolau Malburg Júnior e Guilherme Asseburg.
A madeira era toda comprada e exportada pelas firmas de Itajaí, que por sua vez se encarregavam do despacho da manteiga, banha e carne de porco de Blumenau, e da mandioca, açúcar mascavo e polvilho, de Brusque e Gaspar. Mas o principal negócio era a exportação de madeira, mandada exclusivamente em consignação para as praças do Rio e Santos – vendas de tabuado a preço fixo cif ou posto não se conhecia ainda. E para tal fim cada firma possuía os seus barcos à vela, desde o lugre “Almirante” de Antonio Liberato, o patacho “Tigre” de Reis e Bauer, da barca “Ramona” e outros de Malburg, do iate “Gertrudes” (célebres pelas suas viagens – relâmpago entre Itajaí e Santos) e da escuna “Felix” de Asseburg e do lugre “Vieira” de Konder. O mestre Pedro Júlio, comandante do “Gertrudes”, era tido como o melhor navegador da costa.
Explicações necessárias: O coronel Antônio Pereira Liberato, fora chefe do antigo Partido Liberal em Itajaí. Nicolau Malburg Júnior era o sucessor do velho Nicolau Malburg, um dos negociantes mais antigos do nosso lugar, e avo dos atuais Malburgs. João Bauer era negociante de madeiras da colônia Brusque, pai de Bauer Júnior e avo dos atuais Bauers.
Bauer Júnior era pai de Arno Bauer, José dos Reis, ou capitão Reis, era um antigo comandante de navios a vela, português de nascimento, desembarcado em Itajaí e casado com uma Olinger de Brusque. Ele criou uma grande descendência, entra a qual D. Maria Garção, Madame Pirajá, Madame Carlos Souza, Artur, Julio, Osvaldo, José e Adolfo Reis. Guilherme Asseburg foi também um dos maiores exportadores de Itajaí e tivera como sócio o Dr. Germano Willerding, avô de Evaldo Willerding.
CAIS DA MARMELADA.
Está visto que, não havendo ainda as ruas traçadas ao longo do rio, não era divertimento algum flanar por aquelas paragens. À beira do Itajaí se amontoavam pilhas de madeira, pois quase todo o tabuado vinha em balsas pelo rio, assim de ser puxado, tábua por tábua, escolhidas este com um golpe de enxó na ponta e transportadas depois para as grades. Mais tarde começou-se a construir pelas Obras do Porto, que aqui existiam desde os primórdios da Primeira República, um cais dito de saneamento, mas que merecia a critica do nosso Padre João Baptista Peters, vigário da paróquia, mais amante da filosofia do que dos ritos teológicos e redator do único jornal da época – “O Progresso” – O cais era intitulado por ele em letra de fôrma: Cais da Marmelada.
O BOTECO E O BOTEQUEIRO
A velha matriz era muito menor do que hoje, porque somente mais tarde se adicionaram as duas naves laterais. Para o lado da praia existia um largo mal arborizado que escondia um kiosque, arrendado pela câmara ao velho Maneca Lopes, que ali vendia roscas e doces e especialmente um parati ou uma laranjinha muito apreciados. Laranjinha era uma aguardente misturada com essências de laranja que os Brasco traziam do Rio.
A freguesia do Maneca Lopes era composta quase só de marinheiros e desocupados, pois os graúdos daquele tempo tomavam a sua cerveja ou o seu vinho do porto ou a sua gasosa ou sua pinga na ante-sala ou buffets dos hotéis. Antes da meia noite Maneca Lopes fechava sua tasca e ia com a velha companheira rumo sua casa. Ele era um velho bonachão, ostentando uma barba de profeta que infundia respeito, mais a mais quando ele não era pêco em falar. Dizem que merecia o título de maior cacete da época. Quem lhe caísse nas garras estava frito. Segundo contavam, ele aproveitou um domingo ou feriado para fazer uma visita ao seu compadre Geraldo Pereira Gonçalves sogro do Sr. José Espíndola, e que entrou de manhã pelo café e só saiu às 10 horas da noite, quando o dono da casa já estava cochilando. Até quando Geraldo Gonçalves tinha de ausentar-se para fazer um serviço, que até o rei não pode mandar executar por outros, o cacete-mór acompanhava até a porta e de fora continuava: “como eu ia lhe dizendo, meu compadre...”
A FALTA DE CAFÉS
O Maneco Lopes nos lembrou um grande atraso do nosso Itajaí como porto de mar: não tínhamos cafés em parte alguma. Hoje que a nossa terra esta apinhada de cafés, é caso de se perguntar como podiam no nosso tempo viver sem cafés, sem essas salas ladrilhadas, em que tanto ocupados e desocupados reúnem-se em torno da mesa com xícaras e açucareiros, para tratar de assuntos tão sérios, como por exemplo: traçar planos estratégicos durante a guerra, armar combates eleitorais e discutir teses políticas, dar palpites sobre o jogo do bicho, etc. Mas, o máximo de atraso, além da falta de cafés, era a carência de luz, luz elétrica naturalmente, porque iluminação a querosene todos possuíam, em candeias de folha os mais pobres, em lampiões vistosos os mais ricos,
A ILUMINAÇÃO PÚBLICA
Nada como a luz elétrica para nivelar as classes; todas têm a sua lâmpada para o “TAC” de acender e apagar, isto quando a luz e força do Juvêncio, que afinal não é dele, não nos prega uma peça, deixando-nos no escuro.
Mas a luz a querosene ou a vela ainda passava, quando estava em casa, mas como havíamos de caminhar pelas ruas nas noites escuras, sem luar? Muito simplesmente. A municipalidade mandara fincar uns postes com grandes intervalos junto aos passeios, ou melhor, nos lados das ruas, uma de folha e vidro para abrigar as lâmpadas de querosene e o problema estava resolvido. Este serviço era ainda arrendado em concorrência pública e às vezes aos preferidos, e estes, como diziam as más línguas, eram sempre amigos da situação. Como vêem a maledicência contra o governo já naquele tempo era assunto de conversas politiqueiras, nas esquinas ou na praça da igreja, já que havia falta de cafés para focalizar estas questões de interesse municipal. Mas, a luz do “profeta”, assim chamado, acendia-se à boca da noite quando já reinava a escuridão, pois tratava-se de economizar combustível e apagava-se de madrugada, mal raiava o sol, se de noite algum noctívago beberrão ou inimigo dos arrendatários da luz, não tivesse quebrado um dos lampiões que o pobre homem era obrigado a repor, ou algum temporal não tivesse causado igual estrago. A favor do homem da “escadinha”, assim chamado porque subia com uma escada portátil nos postes para acender e apagar os lampiões, havia uma cláusula: ele era obrigado a fornecer luz senão 15 dias, na outra metade do mês ele dançava e entregava o serviço a Lua. E dali por diante esta cumpria religiosamente e gratuitamente com o seu dever, salvo quando o mau tempo não viesse ocultar o disco lunar e mergulhar a cidade em plena escuridão. Numa noite dessas, como sair a rua, se o calçamento feito de pedregulho e barro, formava poças de lama que somente botas sólidas podiam atravessar? O melhor era a gente ficar em casa no seu quarto de solteiro e ler à luz de uma vela um livro de sua biblioteca e, por fim, engolir o tédio e dormir.
O PERÍMETRO URBANO
O perímetro urbano também não era muito extenso. Para o lado de Brusque, ele terminava na Rua dos Atiradores, na qual existia o divertimento mais antigo e mais preferido daquele tempo. Para o lado da Fazenda ele ia ter por um lado ao Cortume Schneider, uma das indústrias mais antigas do município, e ao Hospital Santa Beatriz e, por outro lado o morro da Fazenda, onde o irmão mais velho de Lauro Müller, o Coronel Eugênio Luiz Müller, habitava uma fazenda e resistia heroicamente às “intermitentes” e onde mais adiante existia a fabrica de cerveja de alta fermentação do Otto Hosang, irmão do meu condiscípulo no Colégio de Blumenau. Pelo lado da Barra do Rio percorria-se primeiro a Rua Pedro Ferreira, e depois entrava-se na Rua Silva que as vezes se tornava intransitável, devido a um ribeirão, que enchia e baixava com as marés do rio. Os moradores dali já se haviam habituado ao fenômeno, construindo casas sobre estacas com escadas de acesso, parecendo assim uma povoação de habitantes de uma zona lacustre. Ali residia o velho Domingos Braga, pai dos atuais Bragas e Braguinhas, mestre de barcos, de nacionalidade lusitana, e Antonio da Silva Lisboa, muito conhecido como mestre-regente de uma “Furiosa”, na qual ele tocava, com muito entusiasmo, a sua requinta. Onde a Rua Silva encontrava a saída da Rua Sete de Setembro, rumo para a Barra do Rio tomava pelo rio acima, exatamente como hoje, e depois de atravessar o ribeirão da Caetana, uma preta muito conhecida de todos, e meio mandingueira que ali morava e exibia uma santa que chorava. Atravessando o pontilhão, chegava-se a uma baixada de areia solta que ia ter ao Largo Gonzaga. Na baixada morava também um marítimo português, de nome Nicolau Diniz Marquez ou Nicolau da Baixada. Era um velho curioso, com uma barba à passa piolho e que contava histórias e episódios marítimos, e tratava todo mundo com afabilidade. Do Largo Gonzaga para cima eram barrancos laterais de grama ou capim com leito de areia solta até a Barra do Rio. Essa caminhada eu a fiz durante algum tempo, duas vezes por dia, de manhã e à noite, quando comecei a dirigir uma fábrica da taboinhas de cedro para charutos, no mesmo local onde hoje está a Fábrica de Papel.
HOTÉIS E HOSPEDARIAS
Mas quem percorresse essas ruas e caminhos no verão havia de sentir a falta de outra necessidade: gelo. Sim, no Itajaí havia gelo e as geladeiras ou ainda não tinham sido inventadas ou não haviam aportado por á nossas terras. Todos os hotéis e pessoas graúdas mandavam construir em suas casas adegas para refrigerar um pouco as suas bebidas, do contrário, não havia outro remédio de que absorver, qual purgante, uma garrafa de bolinha ou uma garrafa de cerveja marca barbante. Assim era intitulada a cerveja de alta fermentação que se fabricava em Itajaí, em duas cervejarias, a de Fernando Treder e a de Otto Hosang, já citada. Para tomá-las tinha que se recorrer aos hotéis, que possuíam um buffet e uma ante-sala, na entrada para os amigos de Gambrinus, tomarem a sua bebida e jogarem um caneco. Na Rua Lauro Müller, no prédio do atual Hotel Itajaí, funcionava o Hotel Brasil, de propriedade do Sr. Alexius Reiser, mais tarde sogro do Sr. Bruno Malburg, sucessor da firma Nicolau Malburg Júnior. A senhora Reiser era a parteira das damas da melhor sociedade.
Na Rua Hercílio Luz, ao lado esquerdo de quem sobe, situava-se nos prédios, atualmente pertencentes a Julio Willerding, o Hotel Scheeffer, pai do Sr. Erico Scheeffer. Ali se hospedava o mundo oficial e celebravam-se os banquetes da terra. O terceiro hotel era o do Comércio chamado, sito na antiga Rua do Comércio, hoje Felipe Schmidt, onde se localiza hoje o atual Grande Hotel. Era uma hospedaria do pessoal mis pobre, uma espécie de Hotel Garcia da época. Era proprietário deste hotel o Sr. Gabriel Heil, um alemão muito benquisto, pai do nosso Ricardo Heil.
Para o pessoal de Luiz Alves e suas carroças havia ainda na Rua Hercílio Luz, em frente ao atual Hotel Garcia, a pensão do casal Tadeu, pai dos Tadeus.
LAZER E DIVERTIMENTOS
Para divertimento e bailes somente a festa anual dos Atiradores, pois o “Guarany” ainda continuava mais carnavalesco do que clube social. Nos Atiradores não reinava etiqueta nem cerimonial algum. Havia o tiro ao alvo e jogo de bola (bolão) para os homens e outros jogos para senhoras. Quando uma dama ganhava um prêmio, exclamava Gabriel Heil: viva a nossa senhora do nosso sócio!
Eram entusiastas dos Atiradores do Sr. Heil, o negociante Pedro Bauer, estabelecido na esquina atual do Sr. Santangelo com uma loja de ferragens, onde havia de tudo por preços bem salgados, e o mestre Müller – Sr. Guilherme Müller, pedreiro e construtor da cidade e avô do nosso amigo Fritz Schneider.
Para namoros, os jogos de prendas em casas de família, que tinham filhas casadoiras, ou as portas laterais da igreja; ou o gargarejo das janelas, o que nem sempre era permitido ou as procissões em que de longe se acompanhava a namorada, vestida de virgem, ou os leilões, em que cada janota procurava vencer o concorrente na oferta do leilão para a preferida que ficava bem longe. “Dou mais tanto para oferecer a Dona Miloca...”
Sentindo e vivendo todo isso, em uma cidade sem luz, sem cafés, sem divertimentos, sem nada, a gente tinha vontade de exclamar como Carlos Drummond de Andrade, ao descrever, em versos futuristas, uma aldeia, assim: mas que vid besta, meu Deus!
O EXODO
Os rapazes que podiam ou tinham coragem abandonavam Itajaí. Arranjavam uma passagem num barco a vela e iam para Santos ou Rio, a fim de arrajar emprego, ou então embarcavam logo no navio para seguirem carreira de piloto ou tomavam os poucos vapores que escalavam em nosso porto para serem foguistas e futuros maquinistas. O único vapor de passageiros que passava em Itajaí eram Lloyd da Lina de Laguna, Florianópolis, Itajaí, S. Francisco, Santos e Rio. Os cargueiros começavam também a aparecer; eram vapores sem linha regular e pertencentes a armadores de Santos e Rio e chamavam-se Normandia, Augusto Leal e Itararé. Faziam concorrência aos navios a vela da praça e eram consignados à nossa firma, porque tínhamos perdido o nosso lugre “Vieira”, quando ele atendia ao serviço de um navio alemão, na enseada de Cabeçudas, e batera, ao entrar na barra, na laje da ponta da Atalaia. Os pilotos, maquinistas e dispenseiros desses vapores eram moços algo instruídos e traquejados na vida social das grandes cidades, e assim misturavam-se com a nossa mocidade e sacudiam a modorra da nossa aldeia...Mas, poucos dias eles permaneciam aqui, e seu fito principal era namorar, desembarcar e arranjar uma mocinha ingênua da província para casar.
Foi assim que o pernambucano Eduardo Pessoa Lins ficou em Itajaí, preso aos encantos de uma moça da antiga família itajaiense, com a qual se casou. Foi Feliz no consórcio, embora a morte o surpreendesse em pleno vigor da mocidade. Eduardo Lins deixou três filhos que honram a memória paterna: Genésio Lins e Mario Lins, banqueiros, e César Lins piloto de longo curso.
O ENSINO
Não sei se os fatos que narro são cronologicamente exatos, pode ser que se dessem antes ou depois. O que pouco importa, pois já disse o poeta: “a memória evoca almas frias”. Quero apenas constatar que para nós, uma meia dúzia de moços, que aspirávamos uma vida mais interessante e mais inteligente, o destino ainda não chegara.
No entanto, quando menos esperávamos, ele chegou.
Desembarcou do vapor da. carreira de Laguna um moço jovem e moreno, carregando uma pequena maleta, que demonstrava poucos haveres e abrigou-se num hotel da cidade. Chamava-se Luiz Tibúrcio de Freitas. Logo informou-se do hoteleiro e de outras pessoas, das condições do ensino público, e elas confirmaram os dizeres dos letrados de Laguna, de onde voltava. Havia em nossa terra apenas escolas oficiais ou particulares de desemburrar ou do B-à-Bá para as crianças pobres; os pais que tinham posses, mandavam seus filhos para os colégios de Blumenau. Percebeu o moço imediatamente que para ganhar a sua subsistência, só havia um meio: abrir um colégio. Em uma casa à Rua Lauro Müller, pertencente ao capitão desembarcado da Marinha Mercante, Sr. Maneca Pereira, sogro do Sr. Bonifácio Schmitt, ele encontrou logo uma sala vasta e ali abriu a sua escola: de manhã para as crianças maiores que já tivessem absorvido as primeiras letras, e, de noite, um curso para adultos.
A PRIMEIRA TURMA
Nesse curso noturno depressa nos inscrevemos, pois estávamos ansiosos por aprender mais alguma cousa. Formamos logo uma turma composta de meu irmão Arno, de Antonio Tavares d’Amaral, que trabalhava no armazém de secos e molhados, sito à Rua Pedro Ferreira, dos seus tios, irmãos, João José Pinto do Amaral, de Artur da Silva Valle, empregado do neociante varejista Sr. Donato Gonçalves da Luz e do autor desta crônica e outros. Isto para falar nos mais velhos. O nosso companheiro Juvêncio Amaral também aparecia, quando não estivesse em viagem de compras no interior e especialmente no Rio Pequeno e Limoeiro, onde tinha um conhecido patrício, de nome Carlos Souza Caldas, denominado Carlos Galego ou Carlos Cabeludo. Também meus irmãos Adolfo e Victor freqüentavam o curso, quando se achavam de férias. É que nosso curso não abrangia somente gramática portuguesa, mas também francês e, sobretudo literatura. Tibúrcio era um excelente explicador como mestre, mas como intelectual cativava à primeira vista, e sabia escolher os seus alunos. E nós que andávamos à cata de um guia na vida, sem demora fomos ao seu encontro e ele nos recebeu de braços abertos para formarmos um grupo de amigos e companheiros, capazes de compreendê-lo e de tornar mais ameno e agradável o clima social da província. Revelou-nos com franqueza a sua vida.
TIBÚRCIO DE FREITAS
Nascera e se educara no Ceará, donde viera para o Rio conhecer um centro maior. Na antiga corte ele se empregara no correio e conhecera, através de amigos, o nosso poeta máximo Cruz Sousa, de quem se tornara um discípulo dileto. Assistira à tragédia do poeta, lutando para viver num meio hostil ao negro, apesar da abolição, e o vira morrendo na última miséria, vítima da peste branca, a tuberculose. Morto o seu grande mestre, ele pedira demissão do seu emprego para conhecer o torrão natal de Cruz e Sousa, cujos encantos sedutores da natureza privilegiada, especialmente das praias e águas da Ilha, ele tanto elogiava, pintando a sua terra como um recanto do paraíso. E Tibúrcio desembarcou em Florianópolis, viu e admirou a terra do mestre, mas sentiu logo que ali não havia lugar para ele ganhar a vida. Prosseguiu viagem para Laguna,donde, depois de alguns dias, aconselhado por confrades literários, resolveu terminar sua peregrinação em nossa terra. Sentiu que acertara com o seu rumo, Seu rosto largo de um moreno carregado, em que já se pintava o tédio do artista cansado, começou a adquirir feições vivas de um sonhador triunfante. Sua cabeça, grande, ornada de uma cabeleira de cabelos pretos e corredios de caboclo, seus olhos escuros de árabe, seu pescoço taurino, seu tórax desenvolvido e largo, enfim, a figura mais alta do que baixa, denunciava um homem forte do adusto Ceará.
Cearense que, como trabalhador, não podendo resistir à seca agreste emigra para o Acre, a fim de extrair borracha, do homem de letras que procura centros maiores para triunfar pelo talento. Mas a figura de Tibúrcio, física ou intelectual, não era fácil de ser compreendida. As mulheres que amavam os peraltas e pelintras da época, viam nele um indivíduo exótico e estranho; talvez fizessem galhofa secretamente daquele colarinho duro e alto, à Santos Dummont, da sua gravata ampla de borboleta, do seu paletó de alpaca preta e suas calças listradas, e do seu modo de andar, balançando na mão uma bengalinha de junco. Os homens o tachavam de um professor esquisito e meio maluco. Somente os seus discípulos o compreendiam e amavam. E éramos apenas dois (Antonio Amaral e Marcos) que formavam com o mestre uma trindade inseparável. Às vezes aparecia Arthur Vale, que não chegava a entendê-lo, e nas férias meus irmãos Victor e Adolfo que muito o admiravam. O meu irmão Arno, prestes a deixar Itajaí, não se entusiasmava muito pela literatura: assim na realidade ficávamos nós dois a receber integralmente as lições do mestre querido para tornar-nos depois seus amigos e admiradores para a vida e para a morte.
AS PRIMEIRAS AULAS
A primeira lição de Português que ele deu, nos deixou a princípio estarrecidos. “Si queres aprender a língua portuguesa, nada mais fácil: lede um bom livro”. E nos entregou as mão algumas obras, de quem?
De Eça de Queiroz. Sim, desse Eça que depois de mais de quarenta anos, está apregoado entre a mocidade de hoje como um grande romancista e mestre da escola realista!
E com o Eça aprendemos não só a manejar um português moderno, livre do ranço clássico do Romantismo, e da escola do Castilho português, como ainda a manobrar uma arma literária e perigosa que ainda não conhecíamos – A IRONIA -. E Tibúrcio começou a nos explicar, como se podia diagnosticar ao vivo, pelo microscópio a ironia, os Pachecos, os Conselheiros Acácios, os Padre Amaro, os Primos Basílios, etc. Mas, a lição não ficou só no Eça, ela estendeu-se aos célebres Vencidos da Vida da literatura Coimbrã: Ramalho Ortigão, irmão gêmeo na amizade e nas letras de Eça, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro e o poeta que era um santo: Antero de Quental. (Omitiremos as outras aulas.)
AS DISTRAÇÕES
Ninguém julgue,porém, que nossa convivência com Tibúrcio de Freitas consistia simplesmente em aprender português, francês e literatura. Não! Como moços, ele sabia que necessitávamos de distrações e assim organizava divertimentos que não custavam muito dinheiro, porque nós todos, inclusive o autor destas notas, não dispúnhamos de recursos para grandes gastos.
Nas noites de luar, por exemplo, Tibúrcio nos convidava a um passeio pela cidade; especialmente pelo lado da Fazenda, então a mais habitada zona da cidade e de ruas mais largas. Íamos apreciar e admirar “o clarão branco, lânguido, lívio subindo dos montes”, como dizia Cruz e Souza, recitar versos e cantar melodias nacionais ou portuguesas, e, as vezes acompanhávamos as seresta, muito comuns naquela época, nas quais tomava parte também um conhecido nosso - Álvaro Cigarreiro – Álvaro Rodrigues da Costa – que tocava um instrumento talvez desaparecido hoje - o Machete. Ele era de origem portuguesa e fabricava cigarros de palha ou papel, porque naquele tempo, as fábricas de fora não faziam cigarros, mas apenas forneciam papel, palha e fumo para os cigarreiros da província. Álvaro era também dado às letras e afeiçoado à arte dramática que exerceu em tempos passados, nas funções de ponto, ensaiador e contra-regra. De gênio alegre e irônico, Álvaro nos deliciava com os seus trocadilhos e piadas amorosas puxando o seu cavanhaque e uma pêra vistosa. Ele era avô da senhora do Dr. Juca Schmitt. Tibúrcio ainda inventava excursões aos domingos e feriados pelos morros das redondezas, especialmente da Caixa d’Água, para contemplar embevecido e comovido nas águas cantantes dos ribeirões. E com mutismo de um panteísta, ele adorava aquela linfa cristalina e, quando falava, era para exclamar a sua admiração de cearense, por aquele líquido que eles não tinham no nordeste e cuja abundância nós não sabíamos apreciar. Outras vezes, íamos fazer umas pândegas (naquele tempo ainda não haviam inventado o termo farra), para comer uma bacalhoada, na venda do Domingos Marquesi, um dispenseiro desembarcado e que armara uma tasca numa casinha, situada perto do atual prédio da Malburg à direita da Rua Pedro Ferreira. Ali numa saleta dos fundos, entrávamos no bacalhau, preparado pelo Marquesi e fornecido pelo Antônio Amaral, e bebíamos cerveja marca Barbante, fria e quase gelada que o vendeiro havia colocado no fundo de um poço, que existia atrás da saleta. E quando a bebida loirejava nos copos grossos da taverna, Tibúrcio começava recitar Castro Alves: “ Escravo, enche essa taça! Quero espancar a nuvem da desgraça que além dos ares lentamente passa ao meu gênio a quebranta!” Outras vezes, principalmente nas noites ventosas e frias de um terral cortante, íamos visitar o botequim de Carlos Frederico Seára Júnior, sito na esquina em que hoje funciona a firma G. Miranda. Anexa ele tinha uma fábrica de gasosa de bolinha que se fechavam e abriam com uma bolinha metida no meio do gargalo, daí o nome de gasosa de bolinha, mas nós não queríamos água gaseificada, desejávamos era ingurgitar vinho do Porto nº4, uma marca que minha casa importava diretamente. E ali tomávamos, como dizia Antônio Amaral, uma tarrascada de amargas recordações. Cada um deitava o verbo, encarapitado num meio alqueire, de doca para baixo, e ainda me lembro que eu intitulei de reverendíssimos os ouvintes que eram apenas quatro, os três da nossa roda e o Carlos Seára. O botequim mandávamos fechar para ninguém nos aborrecer: Revendêssemos: falava em mim então o subconsciente, como se diz hoje, lembrando que eu deixara de ser frade franciscano.
OS CLUBES
Tibúrcio ainda animava as festas do “Grêmio 3 de Maio” que fora fundado para comemorar as datas nacionais.
Quanto aos jogos de prenda, ele achava meio cacetes e fracos para ligar namoros a casamenteiros. E por isso, quando meu sogro Alexandre Justino Regis, o velho Chandoca chamado, fundou o Clube 20 de Agosto, ele ficou tão entusiasmado que nos obrigou a mandar fazer uma indumentária nova, um fraque e uma cartolina. Foi uma festa de truz, abrilhantada pela banda da cidade.
É preciso que se diga que o meu sogro somente se animou a fundar esse clube porque encontrou em casa do Sr. Gabriel Heil que acabara com o Hotel, uma sala espaçosa capaz de comportar pessoal dançante da cidade. O Sr. Regis havia sido demitido pelo governo Prudente de Morais ou Campos Salles e alugara a casa grande do hotel para estabelecer uma refinara de açúcar mascavo e para as filhas poderem lecionar piano e o ensino primário. Uma das professoras era minha futura mulher e, entre os discípulos das primeiras letras, lembro-me havia o menino Mário do Canto Liberato, hoje diretor do serviço cambial do Banco do Brasil em São Paulo. Mas, voltemos ao “ 20 de Agosto”.
De fato este clube era um excelente catalisador para os namorados, e muito moço conseguiu ali firmar bases para um “conjugo vobis”. Talvez fosse eu também um dos interessados, pois ali morava minha namorada e filha do dono da casa, conforme já acima ficou dito. Como era natural, todos tínhamos nossos namoros, menos o nosso Tibúrcio. Quis casar com duas itajaienses; para uma delas dedicou uma “prosa e verso” encantadora, mas ambas recusaram. Confirmou-se o fato de que, a não ser o grande Goethe, nenhum artista de pensamento de valor, conseguiu ser compreendido e amado pelas mulheres.
Além dos namoros e bailes, havia também as palestras e os “cavacos” (naquele tempo ainda não se conhecia o bate-papo) com algumas figuras interessantes da cidade, mais para colher as impressões da fauna humana e aprender a conhecer os homens. Um dos nossos prediletos encontros era com o velho Botica, o maior farmacêutico da cidade. Emílio da Cruz Coutinho, chamado vulgarmente Emílio Botica, era português e tinha sua botica numa casa velha da Rua Lauro Müller que foi demolida para dar lugar ao prédio da Farmácia Santa Terezinha. Mais tarde, Emilio edificou um prédio para a sua farmácia na esquina da Rua 15 de Julho com a Lauro Müller. Ele era um velho interessante e simpático, ostentando um gorro de borla na cabeça , e inteiramente barbado – disse-nos, que uma vez o barbeiro lhe pusera a navalha no rosto e que ele tremera pensando no perigo que correra. – Dizia-se com muito orgulho monarquista e assinava o “Jornal do Brasil”. Nós às vezes esticávamos com ele por causa das nossas idéias republicanas e ele respondia: “bela coisa vocês fizeram exportando o velho Imperador como uma saca de café”. Não acreditava nos remédios que vendia e dizia que tudo não passava de droga. Era dono de oito esquinas da cidade, se não me engano, se não me engano, e eu já prevendo em mim os ideais georgistas, fazia minhas restrições à acumulação de terrenos urbanos para não serem edificados.
Ele respondia de pronto: “Tolo é quem põe os bens ao luar”. Enfim, o Emilio Botica fez época e deixou uma grande descendência na família Coutinho que todos conhecem.
O FINAL
Mas a convivência íntima entre o antigo mestre e seus discípulos, a ligação mais estreita entre o amigo e seus companheiros, devia terminar um dia. O trabalho de subsistência nos chamava e obrigava a cuidar mais da vida material do que da literatura. Antônio Amaral mudara-se para Florianópolis para colocar-se no comércio da Capital. Eu mesmo na falta do meu irmão Arno que fora para o Rio, era obrigado a assumir a gerência da casa da minha mãe e, ao mesmo tempo, resolvera casar-me, uma vez que a vida de solteiro se tornara insuportável. E dissolvemos o nosso grêmio, contando com a aquiescência do nosso grande amigo que compreendia a nossa situação, e, se não fazia o mesmo, era porque o amor fora hostil e cruel ao seu grande espírito. Continuávamos, entretanto, ligados, embora, não tão intimamente, a Tibúrcio de Freitas, cujos triunfos em Itajaí nós acompanhamos com viva satisfação: a abertura de um grande coleio e depois a fundação de um jornal semanal e moderno – “O Novidades” – que teve fama em nosso Estado e fora dele.